O Emigrante

No tempo em que Lisboa ainda era uma mulher romântica, aconteceu a história de um rapaz, que à semelhança de muitos depois dele e alguns antes, decidiu trocar esta pátria ingrata pela fama, essa outra mulher difícil que só obrigada pelo destino decide usar o nosso nome por alguns instantes.
Mas Jacinto já nascera com ela por apelido, não decidisse o destino ignorar aquele filho de pai desconhecido que Deus decidira adoptar. Pois tal apelido foi-lhe legado pela mãe Joana da Alfama, “nome de guerra” de quem vende amor pelas ruas. “Alfama” era assim como que uma fama que vinha dos mouros e ficava ali bem perto do nome de quem não tinha outro apelido para receber. Mas não seria o último apelido que o dito herdaria.
Logo que nasceu, Jacinto conseguira um prodígio, o parto foi tão custoso e tantas horas demorou que Joana, a parteira de serviço e o próprio inquilino que se recusava a deixar aquela casa de 9 meses, tiveram que fazer um intervalo para dormir. E findados dois dias de martírio, Joana com o desgraçado nas mãos decidiu que ia acabar com aquela vida de amor-a-minuto e que ia mas é para esposa de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois as hipóteses de lhe sair outra coisa daquelas do corpo diminuíam drasticamente.
Ou seja Jacinto apenas por nascer, evangelizou a maior mulher-taximetro que havia em terras lusas. Que passou de Joana de Alfama a irmã Dolores da Aparição, freira Carmelita descalça, por nova obrigação e antigo hábito.
Quanto ao rapaz, ele cresceu ao Deus dará pelos bairros pobres de Lisboa, que pediam emprestado o cheiro do peixe amanhado e das imundices de gatos, que acordavam ao pregão da varina e adormeciam ouvindo as ameaças de porrada dos bêbados nas tascas. Onde se cantava um fado sujo e as mulheres se vendiam a metro pelos chulos. Era a Lisboa genuína que nem o próprio nome sabia ler, vestida rota, sem tempo para chorar a pobreza nem escolher almoço. Aqui vivia Jacinto num beco escuro, em casa do patrão, José Fialho, talhante de profissão.
Com ele tinha aprendido o belo ofício; pegar em animais e torna-los comida, tirar pelo, pele, ossos, tripas. Tirar tudo o que fosse parecido com o humano para o Homem ter coragem de os levar à boca. Entravam galinhas, porcos, vitelos, cabritos, leitões, e perus, saía carne em pernas, braços e lombos amputados prontos a serem levados pelas criadas das grandes casas.
Jacinto era talhante desde que se lembrava, tinha sido acolhido por José Fialho, (Zé do Talho para os amigos) um dos clientes mais aficionados da Joana que depois de algumas contas de mercearia que substituíam os testes de DNA de agora, concluiu que podia ser tão pai do miúdo como qualquer outro mas até lhe dava jeito um ajudante. Por isso, levou a criança para casa e ensinou-lhe tudo o que sabia sobre carne e os animais. As lições aconteciam da seguinte maneira, Zé punha a carcaça do animal em cima da mesa e devagar ia mostrando a Jacinto o que se devia fazer, onde era o coração, os rins, o ou os estômagos, o que se devia tirar, o que se devia deixar. Jacinto assistia o cirurgião passando os instrumentos, limpando a testa com um trapo.
No fim da operação, toda aquela carne autopsiada seria cozinhada e adornada em finas porcelanas e oferecida com nomes franceses em sumptuosas refeições.




E no meio disto cresceu Jacinto da Alfama, agora já moço com grande cabeça para o negócio e para a ciência. Foi ele quem deu a ideia de vender gato por lebre, literalmente. E, fazendo isto estabilizou a população felina do bairro e arredores e fez uns dinheiros que dormiam não por cima como ele, mas por baixo do colchão, e que o fazia sonhar com dias de sucesso e fama.
Quanto à ciência, vê-se bem que lhe saia das mãos de veterinário post-mortem, e mesmo sem saber escrevinhar mais que umas letras do nome; um J, um A um C, lá rabiscava no cadernito das contas do mês, com algumas ajudas do barbeiro (medico da altura) a anatomia dos bichos, órgãos dissecados e suas possíveis funções. Oh quantos médicos geniais se perderam por falta de educação. Jacinto teria sido um deles, com certeza.
Mas num daqueles dias que a vida apronta, Jacinto foi-se apaixonar arrebatadamente pela Rosa da Mouraria, prostituta lendária que viera imigrada de Ceuta. Rosa já tinha pelo menos 40 anos, mas trazia uma novidade e pêras. A “dança do ventre” nada tinha a ver com os bailaricos de verão, oh não, era duma ousadia que fazia cócegas no fim da nuca. Lá aparecia ela por uns poucos de reis, entre véus transparentes a dar à cinta, que um dia fora de vespa, e que agora era de elefante. Mas aos olhos do jovem Jacinto que tinha vivido toda a existência entre carnes exuberantes, aquilo tinha o sabor a fina especiaria. Foi amor à primeira vista. Mas um amor destinado ao fracasso.

Pobre Jacinto, nem mãe tivera nem mulher conhecia. Passava noites em claro indagando o mundo feminino com suas carnes finas e frágeis. Como seriam elas por dentro? Nos animais, macho e fêmea lá tinham umas diferenças, mas e nos humanos como seria? Gostava tanto de saber se Rosa era por dentro tão bela como por fora, se seu coração era de ouro, ou de seda, se seu sangue cheirava a cravo, a canela ou antes se tinha o sabor forte do caril.
Uma noite, já com mais álcool que sangue nas veias, partiu da tasca da Adelaide com o fito de ir propor à meretriz um casamento honrado. E para ajudar à cena, convidou o bairro em peso para ir testemunhar a ocasião. O povo que gostava de rixa e bordoada lá foi. Aquilo foram tantas cantorias à janela da Rosa que lhe afugentou a clientela toda. A coitada que já andava numa de promoções a ver se levantava o negócio, fartou-se. E publicamente escorraçou o Jacinto, dizendo que jamais se casaria com tal desgraçado e que o odiava, tudo isto decorado com uns quantos palavrões na língua materna.
A queda foi dura, que aquilo para um homem era demais, tentou suicídio com uma das facas do talho. Mas à última da hora, o Zé interveio e não o deixou fazer tal coisa. Não! Ele valia mais que isso. Ele podia ser alguém nesta vida, caramba. E foi então que o Zé do Talho se encheu de orgulho paternal e depositou no miúdo as economias de uma vida de talhante, e mandou-o emigrar para um sítio qualquer.
E lá foi o Jacinto com a sua malita de ofício, no primeiro navio que encontrou na doca, e só voltou a por os pés numa terra chamada Inglaterra, onde foi viver para um bairro escuro e sujo e arranjou emprego como talhante. A vida não era tão diferente como a de cá, mas Jacinto já não era o mesmo rapaz. Aquele amor infeliz tinha o transtornado, e ficou obcecado pela morfologia interna das mulheres. Queria saber tudo, mas não sabia como.
Uma noite andando por uma viela, meu Deus, ou como se dizia lá na terra, My God, viu um cadáver, sim, era uma mulher morta. Tinha um corte profundo no pescoço. Olhos esgazeados e boca aberta. Jacinto ficou algum tempo a olhar para ela. Devia ser uma prostituta para estar na rua aquela hora da noite.
Foi então que uma ideia lhe passou no espírito e passou uma noite de pura ciência experimental. Passado um mês já sabia tanto sobre mulheres como o maior conquistador. Enquanto isso, os jornais ingleses vendiam aos milhares a notícia do primeiro serial killer. Os nossos ilustres portugueses discutiam nas soirés tal fenómeno moderno, as damas davam gritinhos excitados nos camarotes do teatro, Vá agora é a menina o assassino, assuste-me. Ah, o crime podia ser chique afinal!
Quanto ao Jacinto bem, lá continuava talhante durante o dia, mas enchia-se de cuidado para não esbarrar com tal monstro assassino. Um dia, quando autopsiava mais uma pobre desgraçada que tinha ido deste bairro para outro mais etéreo. Ouviu as sirenes da polícia, Meu Deus. Pensou. Deve ser o assassino, deve andar por perto. Tenho que me esconder. E tão depressa fugiu que se esqueceu da malita com as facas do talho.
No dia seguinte, os jornais saíam furiosos, gritando que acabava de ser encontrada a 5 vitima, o assassino tinha agora um nome próprio, que encontraram na sua mala ao pé do cadáver.

JAC “o estripador”



Em Alfama, as noticias acabaram por chegar, e o Zé do talho deixava escapar sempre uma lagrimazinha de orgulho, quando dizia a quem queria ouvir, que o filho, emigrante em Inglaterra, era tão bom talhante que até já tinha saído nos jornais.

FIM
(2005)

4 comentários:

Don Juan di Marte disse...

és sem dúvida o melhor contador de historias q conheço...colo-me ao ecrã e n saio enquanto n descubro o fim!!
e o melhor? imagino-te a contá-lo em boa voz, com os olhos a brilhar e capaz de prender qq um.
Bravo!!! Bravo!!!

Anônimo disse...

O perfume é um plágio mau do Jacinto talhante

Mami Pereira disse...

por acaso é verdade sim senhores, que eu nem andava perfumado por esta altura!!

Anônimo disse...

gostei do conto. Parabéns podes continuar
Nós por cá prometemos que vamos ler em vez do horóscopo e afins sempre é mais cultural